AGUIAR, 2010

AGUIAR, Lisiane Machado. As potencialidades do pensamento geográfico: a cartografia de Deluze e Guattari como método de pesquisa processual. Anais: XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Caxias do Sul – RS, 2010.

RESUMO: A cartografia como processo teórico-metodológico vem se constituindo recentemente como uma via alternativa para diferentes perspectivas de estudo. Antes, seu uso já se revelava na Psicanálise e na Educação com mais intensidade. Atualmente, a encontramos em Campos mais incomuns, como na Comunicação. Sua apropriação conceitual tem como base, principalmente, a filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Contudo, seu grande diferencial é um pensamento que não se materializa como histórico, que reproduz os fatos de forma representativa, mas geográfico compreendendo que o método em uma pesquisa é como uma paisagem que muda a cada momento e de forma alguma é estática. Dessa forma, este artigo tem como objetivo principal refletir as potencialidades da cartografia como método de pesquisa processual.

PALAVRAS-CHAVE : cartografia; comunicação; método; processualidade.

 

  • Não mais um caminhar para alcançar metas pré-fixadas (metá-hódos), mas o primado do caminhar que traça no percurso suas metas (PASSOS e BARROS, 2009, p.17) (p.2)
  • A apropriação conceitual da cartografia tem como base, principalmente, a filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari, no livro Mil platôs (1995). A presença de Deleuze (autor que se debruçou na releitura de diversos filósofos) faz com que o conceito se caracterize pela atualização de diversos projetos filosóficos, como o método intuitivo de Henri Bergson, ou a genealogia de Michel Foucault. De Bergson, Deleuze (2004) traz para a cartografia as noções de multiplicidade e temporalidade, tais quais como estão construídas no conceito de Duração: o jorro ininterrupto de mudança em que se encontram as diferenças de natureza. Já de Foucault, além do apreço por metáforas geográficas, Deleuze (1990) parece se inspirar no conceito de Dispositivo, como um conjunto multilinear de elementos moventes e heterogêneos. Duração e Dispositivo, a meu ver, são a base de um dos princípios fundadores da cartografia, o Rizoma: uma imagem do pensamento múltiplo. (p.2)
  • Nessa multiplicidade realizar uma pesquisa e enfrentar seu caos não significa pensar historicamente no sentido de narrar os acontecimentos ou de adotar um método tal qual definido pelas ciências naturais para se chegar a um fim concreto ou a uma verdade absoluta, mas é pensar geograficamente, ou seja, o método de pesquisa como uma paisagem que muda a cada momento e de forma alguma é estático.  (p.2)
  • Morin (2003, p.36) : “caminhar sem um caminho, fazer o caminho enquanto se caminha”. Mas, o que isso significa? Significa que as estratégias metodológicas em uma pesquisa vão se construindo na relação com o próprio objeto, de forma processual.  (p.2)
  • A processualidade se faz presente nos avanços e nas paradas, em campo, em letras e linhas, na escrita, em nós, ou seja, a partir do reconhecimento de que o tempo todo estamos em processo, em obra. (p.3)
  • o maior problema não parece ser nem o pluralismo teórico nem o metodológico, mas o uso repetitivo de fórmulas e de conceitos simplesmente trazidos de outras áreas do conhecimento sem reflexão ou problematização. (p.4)
  • Eu me permito a pensar que a cartografia é um método que busca desenvolver práticas de acompanhamento de processos e para isso se desvencilha de métodos rígidos que buscavam representar o objeto retirando-o de seu fluxo e separando-o do sujeito. (p.6)
  • A história da cartografia, que traz no sentido etimológico ‘carta escrita’ é antiga. Por muitos anos o termo ficou restrito ao campo das ciências geográficas, mas atualmente não é possível pensar nela apenas como “arte ou ciência de compor cartas geográficas” 7, pois passou a ser vista, também, pelo prisma do que se convencionou chamar de filosofia da multiplicidade, ou seja, a cartografia, de Deleuze e Guattari, busca em diferentes territórios as especificidades necessárias para compor uma área dinâmica. (p.6)
  • “uma vida está em toda parte, em todos os momentos que tal ou qual sujeito vivo atravessa e que tais objetos vividos medem: vida imanente que transporta os acontecimentos ou singularidades que não fazem mais do que se atualizar nos sujeitos e nos objetos. Essa vida indefinida não tem, ela própria, momentos, por mais próximos que estejam uns dos outros, mas apenas entre-tempos, entre-momentos.” (DELEUZE, 2002, p.14)
  • De acordo com Deleuze e Guattari: O 1º princípio – de conexão – informa que “qualquer ponto do rizoma pode ser conectado ser conectado com qualquer outro e deve sê-lo” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.15) Esse primeiro princípio serve para distinguir o modelo de árvore do rizoma, pois diferente da árvore que segue uma hierarquia (folhas / caule / raízes), o rizoma é totalmente livre, ou seja, conecta-se por contato e desenvolve-se por qualquer direção. (p.9)
  • Logo, o rizoma, diferentemente das árvores ou raízes, é capaz de conectar um ponto a qualquer outro ponto e de qualquer natureza. Um rizoma, para Deleuze (1995) é formado de platôs, que são as regiões de multiplicidades e intensidades conectáveis pelo meio. Por isso, uma das principais características da cartografia é a reflexão das intensidades do objeto de estudo que só são percebidas pelo sujeito na duração. Assim, é importante que o cartógrafo mostre todos os desdobramentos que foram realizados na pesquisa, todos os passos que foram dados, que tenha em mente que o meio, na cartografia, é o que explica os caminhos escolhidos durante o processo de produção de conhecimento. (p.10)
  • Quando o cartógrafo entra em campo já há processos em curso. A pesquisa requer a habitação de um território diferente que, em princípio ele não habita. Nessa medida, a cartografia se aproxima da pesquisa de modo geral, já que ao colocar-se em contato com seu objeto – qualquer que ele seja – o pesquisador passa a habitar uma nova região. Assim, a cartografia propõe um debate e um percurso metodológico que vai se formando na medida em que o pesquisador se defronta com o objeto estudado, permitindo, dessa forma, o desenvolvimento de paisagens psicossociais11 , a constituição de um olhar comprometido com o conhecimento, por meio do qual toda teoria a respeito de um assunto passaria a ser instrumentalizada pelo pesquisador através da observação e da experiência de contato que ele tem com o seu objeto de estudo. Deste modo, o investigador, no processo metodológico, vai processando novos territórios e percorrendo outros caminhos que ampliam os conhecimentos desse sujeito. Nesse sentido, não há o distanciamento dele do seu objeto, o que ocorre é um novo processo de produção de conhecimento. (p.11)
  • Segundo Rolnik (2007), o cartógrafo: é um verdadeiro antropófago: vive de expropriar, se apropriar, devorar e desovar, transvalorado. Está sempre buscando elementos / alimentos para compor suas cartografias. Este é o critério de suas escolhas: descobrir que matérias de expressão, misturadas a quais outras, que composições de linguagem favorecem a passagem das intensidades que percorrem seu corpo no encontro com os corpos que pretende entender. (p.11-12)
  • O tipo de atividade e o grau de envolvimento variam, mas deve existir um rigor no sentido de evitar que a pesquisa cartográfica seja apenas um amontoado de percepções vivenciadas pelo sujeito sem gerar novas visões e possibilidades reflexivas.
  • É nesta mesma direção que Deleuze e Guattari (1995) sublinham que a cartografia não é uma competência, mas uma performance. (p.12)
  • A cartografia busca, em diferentes regiões, as especificidades para compor um olhar, ou seja, não visa construir um mapa que sirva de guia para todos os olhares – até porque cada olhar é único e muda com as vivências do observador – mas, nesse caso busca perceber as dinâmicas, os fluxos e as intensidades que se mostram nos objetos. Diferente de métodos rígidos, a cartografia não visa isolar o objeto de suas articulações históricas nem de suas conexões com o mundo. Ao contrário, o objetivo da cartografia é justamente desenhar a rede de forças à qual o objeto ou fenômeno em questão se encontra conectado, dando conta de suas processualidades.  (p.13)

AMADOR; FONSECA. 2009

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AMADOR, Fernanda.; FONSECA. Tânia Mara Galli. Da intuição como método filosófico à cartografia como método de pesquisa – considerações sobre o exercício cognitivo do cartógrafo. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 61, n. 1, 2009.

 

Resumo: O objetivo deste estudo é divulgar a cartografia como importante inovador metodológico na pesquisa em saúde. O método, originalmente descrito pelos filósofos franceses Gilles Deleuse e Félix Guattari ao final da década de 1960, e cuja abordagem é considerada relativamente nova quanto a seu uso na pesquisa qualitativa no Brasil, surge nos últimos anos como proposta metodológica adotada por pesquisadores brasileiros. Na cartografia, a construção de mapas permite a captação da complexidade presente no campo e nos dados produzidos, que falam dos encontros entre profissionais, gestores, pacientes e familiares. Nesta perspectiva, a cartografia é um modo de mapear a realidade, de acompanhar processo de produção, de possibilitar o acompanhamento de movimentos e intensidades dos sujeitos que compõem a complexa produção de cuidados em saúde.

Palavras chave: Cartografia; Pesquisa qualitativa; Cuidados de saúde.

 

  • Proposto enquanto caminho errante por Gilles Deleuze e Félix Guattari, a cartografia se oferece como trilha para acessar aquilo que força a pensar, dando-se ao pesquisador, como possibilidade de acompanhamento daquilo que não se curva à representação. Entendendo que o método cartográfico convoca um exercício cognitivo peculiar do pesquisador. (p.30)
  • Este texto discute a cartografia, uma prática geográfica de acompanhamento de processos em curso que, mais do que de um traçado de percursos históricos, ocupa-se de um campo de forças no seio mesmo dos estratos. (p.31)
  • Entre sua definição enquanto método e a recusa a qualquer pretensão de sê-lo, a cartografia apresenta-se como procedimento de pesquisa que exige do pesquisador posturas específicas. Convoca-o para um exercício cognitivo peculiar, uma vez que, estando voltado para o traçado de um campo problemático, requer uma cognição muito mais capaz de inventar o mundo. Trata-se de uma invenção que somente se torna viável pelo encontro fecundo entre pesquisador e campo pesquisa, pelo qual o material a pesquisar passa a ser produzido e não coletado, uma vez que emerge de um ponto de contato que implica um deslocamento do lugar de pesquisador como aquele que vê seu campo de pesquisa de um determinado modo e lugar em que ele se vê compelido a pensar e a ver diferentemente, no momento mesmo em que o que é visto e pensado se oferece ao seu olhar. (p.31)
  • A intuição figura, então, diferentemente da inteligência, como via cognitiva para essa esfera de passagem para a duração, tendo sido em virtude dessas considerações que Bergson fez da intuição um método filosófico. A intuição como método é obstinada pela mobilidade, pelo insólito, pelo efêmero. (p.32)
  • Visando a apreensão de uma certa sucessão, cujo procedimento não se faz por justaposição e sim por uma espécie de crescimento por dentro, de prolongamento e em uma interpenetração transversa2 entre passado, presente e futuro, a intuição mostra-se como via de acesso a um plano de transpasse, de transformação, de recombinação e de deslocamento. Opera como via para uma zona de transição, como o próprio Bergson anuncia em seu texto, e à qual a inteligência recusa seu olhar. (p.32)
  • Logo nas primeiras páginas do capítulo intitulado “A intuição como método”, Deleuze (1999) pergunta-se sobre como pode a intuição, que designa antes de tudo um conhecimento imediato, formar um método, já que esse implica em mediações. (p.32)
  • Assim, um problema bem colocado é aquele que se mostra prenhe de uma força problematizadora, capaz de durar em uma zona de recusa à imediata solução pela inteligência, para deixar-se levar por sendas intuitivas capazes de fazer emergir “verdades criadas”. (p.32)
  • Esquecer as diferenças de natureza entre a percepção e a afecção e entre a percepção e a lembrança engendra falsos problemas. Assim, a intuição enquanto método emerge como procedimento de distinção entre as duas esferas, instaurando uma zona de não contigüidade entre as mesmas e abrindo, desse modo, um plano de dissonância por onde ela, muito mais sintonizada com a afecção, possibilita aceder a um plano transitório ao qual a inteligência não se dedica. Trata-se de uma zona relativa às condições daexperiência, as quais são determinadas por perceptos e afectos5,os quais, por se situarem em uma zona de passagem, são afeitos a dar existência às coisas, daí ligando-se a uma regra complementar, pela qual se mostra como um problema, tendo sido bem colocado, tende por si mesmo às forças virtuais em curso de atualização. Tal regra diz: o real é também o que se reúne segundo vias que convergem para um ponto virtual. (p.33)
  • A intuição como método, é então, problematizante, diferenciante e temporalizante. Não seriam tais características próximas do procedimento cartográfico de pesquisa? Retomando alguns pontos das regras da intuição como método de Bergson apresentados até aqui, perguntamos: não seria essa também a busca da cartografia: traçar um campo problemático cuja resolução seja, eminentemente, inventiva? Para tanto, a intuição, enquanto via em que se acessam os perceptos e os afectos, estaria próxima da cartografia como estratégia criadora de mundos? A intuição, colocando os problemas no plano do tempo, figuraria como percurso que permite ao cartógrafo dissolver-se no campo de pesquisa para, assim, encontrar-se com as dissoluções nele presentes? (p.33)
  • […] Para cartografar, faz-se necessário certo desmonte do esquema cognitivo por parte do pesquisador; desmonte esse que lhe possibilite abrir-se às forças do presente para virtualizar o mundo. (p.33)
  • A cartografia, segundo Kastrup (2007), consiste em um método proposto por Deleuze e Guattari (1995) que vem sendo utilizado em pesquisas interessadas pelo estudo da subjetividade. Trata-se de investigar um processo de produção, de acompanhar um certo traçado insólito, um certo tempo que dura. Assim, a cartografia ocupa-se de um plano movente, interessando-lhe as metamorfoses e anamorfoses tomadas como processos de diferenciação. Configurando-se como um método cuja definição de passos a priori é posta sob suspeita, seu fazer se faz por des(fazimento), por uma espécie de disposição de (des)aprontar-se, de modo a sintonizar com os percursos processuais que se constituem em seu objeto. Como fazê-lo, senão adotando uma postura intuitiva? Contudo, assim como a intuição como método se apresenta enquanto um rigoroso procedimento filosófico, a cartografia também exige um rigoroso cuidado do pesquisador. (p.33)
  • Como fazê-lo, então? Kastrup aponta o que seriam oito pistas do cartógrafo: trata-se de um método para acompanhar processos e não representar objetos; refere-se a um coletivo de forças, visa um território existencial; traça um campo problemático; requer a dissolução do ponto de vista do observador; exige certo tipo de atenção ao presente; requer dispositivos para funcionar; e, por fim, consiste em um método que não separa pesquisa de intervenção. (p.34)
  • Traçar um campo problemático enquanto cartógrafo significa problematizar as formas cognitivas do próprio pesquisador em sua relação junto ao campo ao qual se dedica. Assim, exige dele uma permanente modulação do problema, uma postura de abertura às forças que forçam a pensar, como uma sintonia com a dimensão da primeira regra do método intuitivo: reconciliar verdade e criação no nível dos problemas. (p.34)
  • A implicação, inevitável ferramenta no trabalho do cartógrafo, põe em evidência a natureza da relação sujeito-objeto como própria de uma relação transdutiva, em uma alusão ao conceito de transdução7,cunhado por Simondon (1964). Falar em relação transdutiva é remeter a uma relação estabelecida em uma zona de não-formas, portanto, no caso, de não-formas sujeito e objeto que, interpenetrando-se, criam um campo de fecundação mútua e movente. (p.34)
  • Assim, como um coletivo de forças, forja-se o material de pesquisa enquanto mapa, convocando o cartógrafo a acompanhar seu traçado em uma tarefa possível apenas pela criação de um território para habitar enquanto pesquisador: é de dentro enquanto fora8 que se pode operar a cartografia. É incursionando pelo campo, em uma postura sensível ao seu fora, que o pensamento daquele que pesquisa pode fecundar um material empírico e vice-versa. (p.34)
  • Emerge, assim, a cartografia como modo de fazer pesquisa que compõe, com o campo e seus fluxos, vias de acesso ao insuspeito e à variação. Trata-se de traçar um testemunho do mundo por formas novas e inéditas, razão pela qual por cartografia nada se explica, uma vez que os dados, sempre relançados, apenas se implicam, produzindo material de pesquisa, subjetividades e mundos. (p.35)
  • Para cartografar, é necessário, portanto, estabelecer pontos de contato com os perceptos em lugar das percepções; com os afectos em lugar das afecções; com um plano de signos e de forças que emergem de um material, por vezes, desconexo e estranho, uma vez que a sedução do cartógrafo se dá, justamente, pelos traçados de virtualidade em meio a planos de atualização. (p.35)
  • Tendo como objetivo acompanhar processos, vem a indagação: como pousar no movimento? Como centrar a atenção naquilo que é movente por natureza? Como atentar para o que ainda não é enquanto atualização? Como estar sensível para as dimensões que o inesperado oferece como surpresa? (p.35)

COESSENS, 2014

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COESSENS, Kathleen. A arte da pesquisa em artes: traçando práxis e reflexão. Art Research Journal, Brasil: V.1/2, p.1-20, 2014.

 

  • A maneira que pensamos sobre as práticas da pesquisa está inserida nas tradições do ambiente de pesquisa, comunidades científicas, agendas e espaços de disciplinas compartilhados, e também, na nossa história, educação e no quadro ideológico ou visão de mundo que não só herdamos, mas também adotamos. (p.1)
  • A sociedade ocidental tem se tornado mais e mais focada em seus valores e produção epistêmica: mapeamos qualquer coisa como “conhecimento”. As artes não escapam a essa evolução. Enquanto tal evolução tem benefícios, também tem os seus perigos. É claro que uma sociedade culturalmente e epistemicamente produtiva oferece potencial para práticas criativas e contribuições originais ao conhecimento. No entanto, quando renomeamos esta evolução como uma economia de conhecimento e os seus resultados como produtos, a pesquisa corre o risco de cair nas garras de um processo de comercialização e de racionalização, onde os valores estéticos e epistêmicos tornam-se econômicos. (p.1-2)
  • O principal desafio da pesquisa artística é então, construir uma cultura de pesquisa que faça a diferença, tanto no campo da pesquisa, como na sociedade. (p.2)
  • O pesquisar artístico significa abrir um campo, até agora inexplorado, ou pelo menos que seja um campo não expresso, o que significa questionar as condições desse campo, incluindo o seu conteúdo e significado: (p.2)
  • É somente através do artista que novas ideias sobre o conhecimento de outra maneira tácito e implícito podem ser adquiridas, e somente enquanto o artista/pesquisador permanecer um artista ele ou ela será capaz de enriquecer as pesquisas existentes realizadas por cientistas. (Coessens, Crispin e Douglas 2009, p. 91). (p.2)
  • Embora a cultura global de pesquisa tenha características diferentes para compartilhar – como semelhanças de família no sentido de Wittgenstein – todas elas usam seus próprios binóculos para se concentrarem em uma determinada direção e orientação, e esclarecer uma parte específica do que é tão difícil de distinguir do ruído de fundo. (p.4)
  • A arte não olha para o mundo através de binóculos, mas sim através de um prisma. O prisma é um objeto óptico transparente com superfícies planas e polidas que refratam a luz ou a fragmentam em suas cores espectrais constituintes, dependendo do ângulo e dispersão das superfícies. O artista sempre voltou sua atenção para ângulos do mundo diferentes, muitas vezes inesperados, resistindo não apenas ao óbvio, mas também ao foco disciplinar – forçando o olhar a partir de certo ângulo: Os artistas, como os etnógrafos, treinam seus olhos para verem coisas que outras pessoas não veem. Eles tentam apresentar o que eles veem para que nós, o público, possamos vislumbrar algo aonde olhamos milhares de vezes e não conseguimos encontrar nada notável (Hoyem, 2009). (p.4)
  • A experiência do artista segue caminhos diferentes no tempo e no espaço, na percepção e na criação, e incorpora um campo rizomático de trajetórias. (p.5)
  • Percursos vivenciais e experimentais só podem ser salvos do esquecimento pelo empenho do artista na exploração e expressão dos diferentes caminhos e traços de sua prática – pelo artista como pesquisador. A visão e a iniciativa são novamente prismáticas, mas os diversos reflexos coloridos são agora objetos de preocupação estética e epistêmica. Esse empreendimento abre caminhos de pesquisa que podem trazer novos conhecimentos, bem como alterar o conhecimento existente. (p.5)
  • De um lado, a exploração de diferentes especialidades, métodos, práticas e questões, nas ciências naturais, humanas e cognitivas, em relação com o campo das artes, lançarão uma espécie de fórum para o diálogo e a reflexão sobre o conhecimento-criação, descoberta e investigação. Do um outro lado, a idiossincrasia e a abertura prismática das práticas artísticas, instigam o artista-pesquisador a desenvolver suas próprias maneiras de experimentação e exploração. O artistapesquisador, assim como o artista, tem  uma visão prismática, diferente da binocular. (p.5)
  • Enquanto a abordagem orientada pela teoria tornou-se o método científico dominante, a abordagem orientada pela experiência foi favorecida pelas formas de compreensão do mundo “não científicas” ou artísticas. No entanto, ambas as perspectivas visam um questionamento do mundo, resultando em uma melhor compreensão dos seres humanos e de seu meio ambiente, e em conhecimento que pode ser comunicado (p.6)
  • A noção de ação é interessante nas artes, uma vez que coloca o experimento dentro de uma relação sujeito-ambiente. Uma ação experimental é baseada na observação e intervenção, explorando as relações desconhecidas entre o sujeito e a ação. Não é apenas sobre “o que acontece”, mas sobre a própria ação que faz “o que acontece” e a possível intervenção. A experimentação aqui está muito mais relacionada às suas origens etimológicas de risco e perigo. A palavra experiência tem origem do verbo latino periri, que significa “experimentar”, mas também “correr riscos” e até “morrer” – pensar em perigo. O prefixo ex implica um movimento, um “sair”. (p.7)
  • No entanto, no domínio das artes, as teorias não podem ser articuladas de forma isolada da prática e da pesquisa do artista, porque elas são estabelecidas e construídas a partir da própria prática. E essa prática em particular contém uma busca inesperada e de caráter aberto, constituindo assim um resultado criativo e estético. (p.7)
  • Como tal, o artista utiliza diversos tipos de conhecimento, uma bricolagem epistêmica de experiências e conhecimentos a respeito do corpo, materiais, inspirações pessoais, além do contexto cultural em que ele se insere (Lévi Strauss 1962). (p.8)
  • A dificuldade surge em como coletar a descontinuidade e justaposição de conhecimento(s) em uma totalidade coerente ou pelo menos compreensível para que possa ser comunicável à sociedade. (p.8)
  • Como cada rede de prática do artista nunca termina, o esforço artístico continua a ser um processo dinâmico em que o artista terá que reajustar os esquemas anteriormente adquiridos, cada vez (re)-criando sua arte, reconstruindo sua rede. O artista terá que lidar, outra vez, com aspectos novos ou diferentes daquelas de dimensões tácitas, cada vez explorando novas situações, adaptando e reajustando suas habilidades e competências ligeiramente diferentes dos parâmetros internos e externos – habilidades incorporadas, conhecimento pessoal, códigos semióticos, meio ambientes, auto- reflexividade e da presença dos outros. (p.12)
  • A pesquisa artística necessita de observação, experimentação e comunicação de seus tópicos e práticas. As relações experimentais ocorrem não só dentro de práticas artísticas, mas também no plano interacional onde o mundo sensorial, criativo e estético do artista encontram o mundo da ciência, investigação e de comunicação explícita. (p.17)

REIS; LIBERMAN; CARVALHO. 2015

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REIS, Bruna Martins.; LIBERMAN, Flávia.; CARVALHO, Sérgio Resende. Linhas de um fazer entre corpos: a cartografia, a dança, a clínica e uma experiência de pesquisa. Revista do LUME: Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais – UNICAMP, n.7, 2015.

 

  • campos intensivos criados nos encontros em dança como modos de produção de  outras estratégias de vida e presença. (p.2)
  • Kastrup (in PASSOS et al., 2009), afirma que a cartografia é proposta por Gilles Deleuze e Félix Guatarri para o estudo da dimensão processual da subjetividade e de seu processo de produção, que requer primordialmente a habitação do território investigativo e a implicação do pesquisador no trabalho de campo. (p.2)
  • Pode-se dizer que o método cartográfico tem como objetivo acompanhar processos, cunhando matérias de expressão e criação de sentidos, sem premissas de definir um conjunto de regras abstratas acerca dos procedimentos a serem empregados ou estabelecer um caminho linear para atingir um fim. Ao contrario, trata-se sempre de um certo habitar um campo de pesquisa para com ele dar forma àquilo que se apresenta enquanto traços de um território intensivo. Nesse curso  o que está em jogo são práticas que permitam inventar modos de dar contorno as atualizações vividas em um experienciar-se em dança.(p.2)
  • Ele se utiliza de um ‘composto híbrido’, feito do seu olho, é claro, mas também, e simultaneamente, de seu corpo vibrátil, pois o que quer é aprender o movimento que surge da tensão fecunda entre fluxo e representação: fluxo de intensidades escapando do plano de organização de territórios, desorientando suas cartografias, desestabilizando suas representações e, por sua vez, representações estacando o fluxo, canalizando as intensidades, dando-lhes sentido. Rolnik (1989, p. 68)- (p.3)
  • Neste ponto, apoiados pela concepção de Spinoza (2009) de potência como algo que se estabelece no aumento ou diminuição de intensidade na relação entre corpos, o que consideramos potência pode ser também entendido como estratégia de produção de comum (cf. Pelbart, 2003), posto que o comum deve ser gestado no ato de composição e encontros intra/entre corpos. (p.4)
  • […] sem a preocupação de explicar ou revelar verdades (p.4)
  • Experimentação singular, baseada na ideia de sujeito que se constrói, que é modificável e que se relaciona a partir da ação ética no mundo como elaboração de uma estética da existência. (p.4)
  • […] processo de pesquisa: a criação de acontecimentos que coloquem afetos em movimento nos corpos.  (p.5)
  • É que o meio não é media; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma parte para outra reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio. Deleuze e Guatari (1995, p. 37) (P.5-6)
  • Quando nos propomos a cartografar uma experiência, colocamo-nos também no lugar de desmanche daquilo que pensamos conhecer. […] Aquilo que tem força no contágio. Aquilo que nos encanta e envereda com assombro ou surpresa, fazendo composições narrativas em contorções à medida do encantamento que produzem. Dos mundos que revelam. (p.11)
  • Por ser potencializadora da criação de outras sensibilidades, a dança pode operar como desencadeadora de processos de produção de subjetividades abertas à reconstrução de si mesmo no encontro com seu entorno e suas relações. (p.12)
  • Quando falamos em subjetividades, falamos de algo mutante, em constante transformação, que carrega em si um processo de subjetivação ou processo de produção de si.  (p.12-13)
  • Nesta via, pode-se afirmar que “a subjetividade se define por uma atividade de produção” (PASSOS, 2000 p. 1), em que o sujeito aparece como produto – não apenas como produtor ou como sujeito passivo – como o resultado de um processo de produção que é sempre da ordem do coletivo. (p.13)
  • Conforme Guattari (1992, p. 19), a subjetividade é “o conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial”, não se configurando como uma entidade ou estado em si, mas como um processo de produção ou um conjunto de condições a partir das quais efeitos existenciais são produzidos. Sempre referendada por um coletivo, posto que é composta por múltiplos vetores. Sendo assim, são múltiplas entradas e múltiplos fatores possíveis para desencadear tais processos, bem como os agenciamentos decorrentes destes, em um contexto em que processos de subjetivação são concebidos como processos criativos. (p.13)
  • Segundo a perspectiva cartográfica, a construção de um território existencial não nos coloca de modo hierárquico diante do objeto, como um obstáculo a ser enfrentado (conhecer = dominar, objeto = o que objeta, o que obstaculiza). Não se trata, portanto, de uma pesquisa sobre algo, mas uma pesquisa com alguém ou algo. Cartografar é sempre compor com o território existencial, engajando-se nele. (ALVAREZ E PASSOS apud PASSOS et. al, 2009, p. 135). (p.13-14)
  • Nessa perspectiva, o desenrolar do processo de pesquisa alimenta a necessidade de ocuparmos nos de nossos próprios corpos e da prática da dança como constituição de um território existencial, traçando relações entre a dança e a clínica a partir daquilo que é sensacionado no corpo, daquilo que é sentido e criado no movimento. A partir de memórias, pensamentos, afetos e sensações, que se atualizam na imersão da investigação. Assim como a dança, que se inscreve nos ossos e músculos, abrindo espaços, trançando as referências vividas em nossas práticas na pesquisa, na clínica e no próprio ato de dançar. De modo que, uma prática híbrida de pesquisa e de implicação vai, necessariamente, se constituindo também como uma prática de si. Processo criativo que produz materialidades expressivas. Matérias de expressão que criam territórios existenciais. Movimento em contínua transformação. (p.14)